8.5.06
7.5.06
Nathalhie Sergueiew: a sinopse de uma biografia

Em 1940, quando as tropas da Wehrmacht descem os Campos Elíseos, decide-se. Personalidade extraordinária, volta à Europa, procura o jornalista Felix Dassel, agente da Abwehr, os serviços secretos militares alemães, e faz-se recrutar como espia. O seu propósito é, porém, outro. Depois de uma longa espera, finalmente em Madrid a caminho de Inglaterra, oferece-se aos britânicos, na pessoa de Kenneth Benton, do MI6. Aceite como agente dupla, ao serviço do XX Committee, com o nome de código «Treasure», é transferida no final de 1943 para Londres, via Gibraltar, onde integra a rede dos que efectuam a desinformação quanto ao local exacto do desembarque das tropas aliadas na frente norte. Vive então entre a capital do Reino Unido e Wraxall, uma localidade perto de Bristol.
Em Março de 1944 é enviada a Lisboa, para um encontro com o seu controlador alemão, o major Emil Kliemann, da Luft Eins, o serviço de espionagem aeronáutica da Abwehr, com o propósito de aqui receber um radioemissor. Hospeda-se no Hotel Avenida Palace, onde se situa o início da narrativa. Coroada de êxito volta a Londres mas, envolta numa teia de suspeições, acaba por ser dispensada. Regressa a Paris, onde conhece um oficial da Força Aérea Americana, Bart Collings, com quem se casa. A irmã fora entretanto assassinada em circunstâncias misteriosas. Vai então para a América, a sua última viagem. Embora minada de uma grave doença renal, a sua tenaz força de vontade, essa força anímica que sempre a acompanhou, parece não ter limites. Prossegue a escrita de um livro sobre as suas memórias da guerra, editado postumamente.
Morre em 1950, com 38 anos de idade.
O livro, escrito numa linguagem narrativa, é o produto de uma investigação de vários anos, envolvendo trabalho nos Arquivos e contactos pessoais com fontes de informação. Não se trata de um romance histórico, mas de um relato histórico que se lê como um romance.
23.3.06
Henry Graham Greene, o nosso agente para Portugal

19.3.06
Salazar e Franco: o encontro secreto
Facto consumado! No maior segredo, nem aos mais íntimos confessando a sua intenção, Salazar partira essa manhã, de automóvel, acompanhado de Lourenço e de dois oficiais de segurança, rumo ao Sul de Portugal. Passado o Tejo pelas nove e meia, junta-se-lhe em Estremoz o Embaixa-dor Pedro Teotónio Pereira que, para o efeito, se deslocara de Madrid, onde chefiava a Legação portuguesa junto de Franco. Retomada a marcha, pela hora do almoço os viajantes estão perto da fronteira. Dá-se então o ainda mais inesperado. A um gesto de Salazar, o motorista estaciona num local retirado da estrada. Cumprindo um ritual pré estabelecido, abre a bagageira da viatura e dali retira um cesto. Dali sai, queiram ou não os circunstantes acreditar, o farnel para o almoço. Disposto a não dar nota da sua presença e a isso juntando uma economia de despesa, Salazar confunde-se com a paisagem e quais turistas aciden-tais em improvisado piquenique, satisfaz assim as exigências vitais. Os outros acompanham-no em respeitoso silêncio. Filho de camponês, a refeição é frugal. E, no entanto, é um momento decisivo da História contemporânea que então se vive. Não adivinhariam os poucos passantes que ali, nesse «déjeneur sur l’herbre» estava a jogar-se o futuro de Portugal e a sorte da Segunda Guerra Mundial. Salazar dirigia-se a Sevilha para um encontro secreto com Franco. Iriam ver-se pela primeira vez. E, no entanto, até ali, tinham estado sempre juntos. O encontro, ocorrido nessa noite no Alcazár, seria decisivo. O ambiente político e militar de então não poderia ser mais carregado. A ameaça de envolvimento de Portugal no conflito militar que, desde há três anos, dilacerava a Europa, era cada vez mais iminente. O país havia definido desde o princípio das hostilidades uma política de neutralidade colaborante, ditada pela Aliança Inglesa e pela consideração que não poderíamos, por causa dela, hostilizar os britânicos nem por efeito dela guerrear os alemães. Mas, na concepção de Oliveira Salazar, a neutralidade jogava-se igualmente na frente atlântica, envolvendo o destino dos Açores e de Cabo Verde, e no bloco peninsular, envolvendo uma concertação com a Espanha. Com o Governo de Madrid Portugal firmara, logo em 1939, um «Tratado de Amizade e de Não Agressão» e em Julho de 1940 um Protocolo Adicional. Mas dois anos volvidos, em 1942, o panorama estava diferente e mais complexo. Aos riscos de uma invasão nazi, que Hitler prenunciara com a «operação Félix», sucedem-se, em cumulação, os riscos de uma invasão aliada, pois certos sectores das «nações unidas» não queriam correr o risco de deixar um país estrategicamente tão importante como Portugal ao acaso de uma ocupação pelo Eixo e da subsequente perda de posição dos pontos nevrálgicos dos Açores e de Cabo Verde. Os relatórios oriundos de Madrid, subscritos pelo Embaixador Samuel Hoare, eram absolutamente preocupantes quanto às intenções das partes em presença. É nesta ambiência que se dá o encontro entre o Generalíssimo Francisco Paulino Hermenegildo Teódulo Franco Bahamonde, o «caudillo» de todas as Espanhas, e o Presidente do Conselho de Ministros de Portugal, Professor António de Oliveira Salazar. À histórica conversa entre ambos apenas assistiria Serrano Suñer, o recém empossado Ministros das Relações Exteriores e cunhado de Franco, o homem da Falange.. O jogo é denso, quer por causa das pessoas em presença, quer por virtude das realidades políticas do momento. Preparado para todas as eventualidades, Salazar não ignorava a manhosa habilidade de Franco que, em declarações sucessivas, parecia decisivamente inclinado para o lado do Eixo nazi fascista, enquanto que, por outro lado, dava sinais contraditórios aos Aliados de que respeitaria a «não beligerância» que definira no advento do conflito. Ainda para complicar a cena, no tablado da encenação política, Franco, que até então havia jogado no apagamento intencional da sua imagem, fazendo projectar à boca de cena, a do seu cunhado, Serrano Suñer, cujo germanofilismo era mais do que patente, surpreendera agora tudo e todos com um golpe de aza, invertendo os papéis e assumindo um papel decisivo na condução dos negócios políticos exteriores. Mas, para além das aparências da encenação política, Suñer era, naquele encontro, uma peça decisiva. O seu passado quando da elaboração do Protocolo Adicional ao Tratado de não agressão havia deixado marcas indeléveis da sua má vontade contra a posição portuguesa. Negociado secretamente entre Teotónio Pereira e Juan Beigbeder Atienza, o documento havia sido aprovado por Franco, mau grado a fria oposição de Suñer, que para o efeito não desdenhara mesmo o animar uma campanha de imprensa hostil a Portugal. Perante isto, Oliveira Salazar não ignorava que parte decisiva do que dissesse ou fizesse deveria também visar o convencimento do cunhado do Generalíssimo, pois seria dele que poderia vir o obstáculo definitivo a qualquer acerto que então se fizesse.Neste particular a sua vitória pessoal foi total. No plano político, a situação também não era fácil para um alinhamento da Espanha com a pretensão portuguesa de subsistência da neutralidade comum. Internamente, eram cada vez mais activas as forças do regime que, confiadas numa vitória nazi, clamavam por um alinhamento militar ao lado de Berlim, a que se juntavam quantos pretendiam a oportunidade para concretizar uma anexação política de Portugal, viabilizando assim a formação de um bloco ibérico, mais satisfatório aos apetites hegemónicos imperiais de Castela. Provocatóriamente, a Falange havia mesmo mandado imprimir, no Auxílio Social de Valladolid um mapa da península no qual Portugal aparecia como uma província de Espanha. Exteriormente, a cada vez mais intensa colaboração militar dos Aliados com a União Soviética, aliciava o endémico anti comunismo espanhol a não alinhar com aqueles que estão agora no mesmo campo dos vermelhos contra os quais se havia erigido, em três anos sanguinolentos, a guerra civil. No meio deste «albergue espanhol» Franco, prudente e ardiloso. Instintivamente, Salazar está convencido de que Franco, mau grado o es-pectáculo das suas declarações e da dos seus, não dará o passo final em favor de Hitler e apenas pretende sossegar o Fuhrer, entretendo-o no eterno jogo das esperanças. A origem de Franco explica a sua psicologia. Fiel ao dito «se vires um galego numa escada nunca saberás se vai a subir ou a descer», Salazar conta com a indefinição do seu interlocutor e não espera dele mais do que sinais.
Formal, a conversa entre os dois estadistas decorre com fluência. Em atenção a Salazar, Franco fala no seu dialecto de origem, o galego, absolutamente compreensível pelo seu interlocutor. Atento, Suñer surpreende-se pelo que lhe é dado observar. Minado de preconceitos políticos, mas arguto observador, rende-se incondicionalmente ao Presidente do Conselho português. Em entrevista posterior com o Embaixador alemão em Madrid, não hesita em declarar a sua opinião. Para si, Salazar é um «homem extremamente simpático, extremamente bem educado, culto, amável, duma perfeita dignidade». Mais tarde a amigos dirá que Salazar é «um homem de primeira ordem, com todo o rigor de um catedrático e a paixão de um místico». Do lado de Franco o desconcerto também é algo evidente. Cioso de um encontro com pompa e circunstância, fica desarmado por aquela discretíssima embaixada. Uma década volvida, em 13.01.58, em entrevista ao jornal conservador francês «Le Figaro», o Generalíssimo não esconderá os seus sentimentos acerca de Salazar que, para ele é «o mais completo e mais digno de respeito estadista que conheci. Olho-o como uma personalidade extraordinária pela sua inteligência, o seu senso político, a sua humanidade. O seu único defeito é a modéstia». Exercício de sedução, a conversa entre os estadistas não foi fácil. Violando a regra estratégica de que uma força cercada não faz manobras, Franco, fugindo para a frente, tenta convencer Salazar de que os Aliados preparam a invasão de Portugal, facto que a Espanha tomará então, a acontecer, como um acto de agressão contra si própria. No plano interno, mostra a funda preocupação pela aliança dos Aliados aos comunistas, face ao que só a esperança de que o III Reich liquide a Rússia, lhe dá algum alento. Inteligente, Salazar percebe o equívoco acerca da eventual vitória a Leste e desloca o problema para o campo onde poderá estar mais à vontade. E adquire a certeza de que a única razão decisiva que fará a Espanha en-trar na guerra contra os Aliados serão razões vitais de abastecimento, caso os víveres que lhe chegam através dos intencionais «buracos» ao bloqueio económico, se venham a mostrar insuficientes. E isso é algo que está ao alcance do Ministério da Guerra Económica (MEW) britânico definir. Regressado de Sevilha no dia seguinte, esgotado pela viagem e pela verti-gem do que negociara, Salazar trazia a mais formidável certeza para o futuro próximo da guerra. Sabe que a não beligerância espanhola se manterá. Divulgado a 13, em telegrama circular do MNE, o comunicado oficial ex-pressa o mínimo, referindo que «nas conferências realizadas foram examinadas, dentro do espírito de amizade e de identidade de vistas que preside às relações entre os dois países peninsulares, tanto os problemas políticos e económicos de carácter geral suscitados pela situação actual do mundo, como os problemas privativos dos dois Estados, tendo-se acordado manter de futuro o mais estreito contacto para a salvaguarda dos interesses comuns dentro dos termos estabelecidos nos referidos convénios». E remata o comunicado - na fina ironia de excluir Suñer e dar notícia de testemunhas do que se passara - : «Assistiram o Embaixador de Portugal em Espanha, Dr. Pedro Teotónio Pereira, e o de Espanha em Portugal Dom Nicolau Franco».
16.3.06
Thomas Harris
11.3.06
Minox
O empenho pela Minox não decorria do facto de o os serviços secretos não terem já um significativo trabalho acumulado sobre aparelhos de natureza idêntica. Os alemães, por exemplo, haviam logrado construir a Robot, uma máquina susceptível de concretizar cinquenta disparos sem necessidade de rebobinar manualmente o filme, o qual era feito avançar, imagem a imagem, através de um motor movido a partir de uma simples mola de tensão. A questão é que a Minox tinha sido de facto um verdadeiro achado. Primeiro, pela capacidade de dissimulação que tal máquina apresentava. Dispensando o clássico fole destinado a aumentar a distância focal a Minox cabia no canto de uma mala ou num bolso de casaco sem levantar qualquer espécie de suspeitas. Além disso, a sua capacidade de armazenamento de película era assombrosa por proporção ao seu tamanho real: cinquenta fotografias por rolo. Finalmente, a extrema pequenez dos seus negativos possibilitava a sua fácil ocultação. Do ponto de vista dos acessórios tudo se conjugava para garantir aos espiões no terreno os meios necessários a uma actuação segura. Ele era o pormenor do cordão que permitia prender a máquina ao cinto das calças, ostentando nós em pontos regulares a distâncias fixas, permitindo fazer leituras exactas de focagem de maneira cómoda. Era o tanque de revelação absolutamente compacto de modo a permitir a efectivação de revelações em plena luz do dia e sem necessidade de recurso a uma câmara escura para o efeito. Era inclusivamente uma lente auxiliar para ampliação do negativo após revelação. Não faltava um tripé especialmente adaptado para fotografar documentos. Chegou-se a um ponto tão ostensivo que os inocentes catálogos já anunciavam a possibilidade de acoplar a máquina a uns binóculos para, através deles, obter fotografias a grande distância. Era a revelação sem sofismas da real utilidade da máquina. O seu foco de curtíssima distância tornava-a aliás o utensílio indicado para fotografar documentos. Muitos arquivos foram assim esventrados. Até à Minox o máximo na miniaturização pertencia à máquina suiça Tesssina. Utilizando o clássico filme de 35 mm esta máquina podia ser dissimulada dentro de um pacote de cigarros ou no interior de um livro, sendo as fotografias tiradas a partir de minúsculos orifícios inseridos no objecto em que a câmara estava dissimulada. O tempo encarregar-se-ia de a ultrapassar. Por alguma razão a Minox grangeou a sua lenda. Interessados no interesse desta máquina, os soviéticos cedo se entretiveram a copiá-la dando azo à Toyka 58-M, uma câmara tão diminuta que podia ser escondida por detrás de uma gravata e controlada a partir de um punho que o agente digitava a partir do bolso onde mantinha discreta a sua mão. Mais tarde, terminada a II Grande Guerra, a URSS viria a desenvolver, a partir de 1948 o modelo F2, largamente usado pelos agentes da KGB. Tratava-se de uma cópia do modelo Robot, dado que a máquina lograva também efectivar o rebobinar automático do filme, poupando assim o agente que a utiizase a ter de efectuar tal tarefa manualmente. Mas seria a Kiev 30 a câmara soviética que mais se aperfeiçoaria do modelo de Minox. Curiosamente, muitos dos agentes do KGB URSS no exterior receberiam para o seu trabalho não máquinas de fabrico soviético mas sim clássicas Minox’s. Foi o que se passou com George Blake e com John Walker. Blake, um místico convertido à espionagem, teve aliás algumas dificuldades de relacionamento com a máquina. Esperava-a mais pequena e mais manuseável. O seu controleiro soviético bem se esmeraria a gabá-la. Só pela força da necessidade conseguiria tornar-se exímio.
3.3.06
O Rei Carol, Nosso Senhor
A situação viria, entretanto, para o domínio público, através de um artigo que tinha todo o ar de haver sido plantado num jornal da periferia política, para o efeito de futura circularização da informação.Na sua edição de 07.11.41 o jornal de esquerda grego NEA publicara, de facto, um artigo curiosamente assinado de Paris com o seguinte texto [AOS/CO/NE-2 pt. 47, fl. 320] no qual se faziam como picantes revelações que «O ex rei da Roménia, Carlos, que há pouco tempo chegou a Lisboa com a sua mulher a ex senhora Lupesco (sic), pode em breve, se o quiser, candidatar-se ao trono de Portugal, que permanece vago desde a morte do rei D. Manuel II. Com efeito Carlos é e o ante neto da Rainha Maria de Portugal que pelo seu casamento com o príncipe alemão Fernando teve três filhos: Pedro V, que morreu quando da peste, Luís I, herdeiro de Pedro e uma filha D. Maria Antónia. Maria Antónia casou com Leopoldo de Hoenzollern e teve dele um filho, Fernando da Roménia, pai de Carlos. Dado que o ex rei Carlos é o descendente do ramo da dinastia portuguesa que permaneceu fiel à Constituição, ele tem, de acordo com certos historiadores mais direitos do que o actual pretende D. Duarte Nuno que é descendente do ramo que se opôs à Constituição e foi por isso expulso de Portugal. Por isso vários se perguntam em Lisboa se no fim Carlos irá reivindicar a Coroa portuguesa sobre a qual tem tantos direitos ou se, pelo contrário, preferirá ser restaurado no trono da Roménia, porque correm rumores de que Carlos está em vias de substituir o seu filho Miguel, que não goza da simpatia dos comunistas romenos».Era dossier arrumado.Só que o que se não queria que entrasse pela porta, apareceu-nos pela janela.Em 3 Março de 1941 ressoou o alarme: Carol fugira de Sevilha e surgira, inopinado em Portugal, na companhia da senhora Lupescu.
Ainda por cima a entrada no nosso país fizera-se por um local simbólico.
De facto, o percurso do rei Carol na sua precipitada fuga de Sevilha para Portugal faz um curioso itinerário, simbólico para os independentistas portugueses. Seguido à vista pela «Seguridad» espanhola, o monarca prevalece-se da potência do automóvel, que conduzia, e pretextando visitar a cidade de Llerena avança direito a estrada que de Santa Olalla por Fregenal de la Sierra, Gerez de los Caballeros e Almendral se dirige a Olivença. Perto da fronteira «o Rei e Madame Lupescu abandonaram o automóvel em que se tinham transportado e auxiliados pelas pessoas que os aguardavam, entre os quais o português Carlos Estebam Reynolds, que tem propriedades em Évora e Estremoz, internaram-se em Portugal, através de uma propriedade atravessada pelo Guadiana que naquele local serve de fronteira aos dois países» [AOS/CO/NE-1A, pt. 18, fls. 335/336]. Reynolds era um homem ligado ao «intelligence service» inglês.
22.8.05
Graham Greene: uma vida secreta

Um homem que ficcionou a própria vida, vivendo-a duplamente e recriando-a ao contá-la, eis no campo literário, Henry Graham Greene: um escritor que conviveu com a realidade dos serviços secretos e disso faz narrativa para os seus livros. Perfazem-se no próximo dia 2 de Outubro, cem anos que ele nasceu.
A sua vida foi controversa, as biografias que se lhe dedicaram também.
O professor americano Norman Sherry levou doze anos a escrever dois volumes de uma obra sobre ele, que projectara em três tomos. Ao ter entrado no segundo momento desse seu aturado trabalho, o biografado morreu-lhe. Estava-se em 1989. Graham Greene faleceu em Vevey, um lugar aprazível para se viver.
Michael Shelden seguiu-lhe os passos, tentando encontrar a verdadeira natureza desse personagem ambíguo, dissimulado, evasivo.
Entrado na «disciplinada e digna fileira dos mortos», Graham Greene é ainda hoje um homem e uma colecção de máscaras da sua pessoa.
O essencial da sua vida pública resume-o à escrita.
O grande público associa-o nomeadamente a guiões para filmes, até porque muitas das suas obras acabaram vertidas para cinema. E não foi só «O Americano Tranquilo», essa narrativa parcialmente auto-biográfica, que descreve parte das suas andanças pelo Vietname. A sétima arte acolheu também muitos outros dos seus trabalhos, alguns em adaptações. É o caso de «O Terceiro Homem», em que Orson Welles tem um desempenho notável, e tantos outros.
Escritor laureado, mas que nunca chegaria a receber o prémio Nobel da literatura, na obra de Greene o tema da espionagem tem, porém, uma incidência muito significativa. Livros como «O nosso homem em Havana», «O Factor Humano», «O Agente Confidencial», ou são histórias vividas no âmago dos serviços de informações ou narrativas para cuja construção o envolvimento de Greene nos serviços secretos foi determinante.
O mundo secreto é uma experiência importante na sua vida.
Greene trabalhou pouco na espionagem e escreveu muito sobre a espionagem.
Parte do seu percurso nos serviços secretos tem a ver com Portugal, durante a Segunda Guerra.
Escritor já consagrado, Graham Greene envolveu-se com os serviços secretos desde o verão de 1941, quando foi recrutado para trabalhar no SIS (MI6), sendo-lhe atribuído o número 59 200.
Na altura estava ligado ao jornalismo, como correspondente do «Spectator».
O seu primeiro posto foi em Freetown, a capital da Serra Leoa. Em princípio o seu destino seria a Libéria, mas o que escrevera no livro «Journey without maps» tornava-o «persona non grata» no país.
A função não era muito significativa, caracterizando-se mais como a de um polícia colonial. Michael Sheldon chamou-lhe «uma comédia de erros».
Cabia-lhe coordenar informações sobre o movimento marítimo no porto, tanto no que se refere a contrabando, como à passagem de passageiros suspeitos.
Os seus planos acabaram por nunca vingar. A ideia de criar um bordel ao serviço da contra-espionagem britânica, por exemplo, encalharia com a noção de que os franceses já faziam concorrência, por essa mesma forma.
Do que ali viveu recolheu matéria-prima humana para a sua escrita.
No mais, o seu dia a dia era de uma monotonia depressiva. Para a vencer, o espírito irrequieto de escritor fez a sua aparição. Greene descobriu que o livro de códigos para as mensagens cifradas continha grupos de cinco letras para as palavras de uso mais frequente. O paradoxo é que entre essas palavras estava «eunuco», uma menção aparentemente insólita para os serviços secretos. Greene não perdeu a oportunidade para ironizar e ao responder a um convite para uma festa de Natal do seu colega em Bathurst, codificou a mensagem «tal como o eunuco, eu não posso vir».
Terminada a missão africana, regressado a Inglaterra, em Fevereiro de 1943, o escritor integrou o «desk» português no sector ibérico da Secção V do MI6, os serviços incumbidos da contra-espionagem no estrangeiro.
Dirigia-o então Harold Russel («Kim») Philby, que escandalizaria o mundo ao fugir em 1963 para a União Soviética, revelando-se como «o terceiro homem» da rede de espiões pró-soviéticos. Curiosamente, «O Terceiro Homem» é um dos mais conhecidos livros de Greene, levado ao cinema pelo realizador Carol Reed.
A Secção V era uma pequena unidade, que primeiro viveu na localidade de St. Albans, no condado de Hertfordshire, e em Julho de 1943 se transferiria para Ryder Street, em Londres, precisamente para o local onde viria a ter sede a prestigiada revista «The Economist».
Concentrava-se ali o esforço de coordenação da contra-espionagem britânica no estrangeiro. O serviço estava organizado segundo critérios geográficos, conforme os países onde se situava a acção.
Um dos «desks» era o ibérico, incumbido de coordenação das estações do MI6 de Madrid, Lisboa, Gibraltar e Tânger.
A actuação contra a espionagem inimiga era particularmente relevante, sobretudo em Portugal.
Protegidos pela prática da política de «neutralidade colaborante» de Oliveira Salazar, os espiões do Eixo nazi fascista pululavam em Lisboa.
Uma das tarefas do «desk» era manter um ficheiro actualizado sobre essa rede, o «Purple Primer», articulando medidas ofensivas contra as suas actuações.
Apesar de mal falar português, Greene terá desempenhado um razoável papel. Disse-mo Charles de Salis, um agente do MI6 em Lisboa, quando o entrevistei há uns anos, na sua residência no sul de Inglaterra.
Só que, na verdade, aquilo que os arquivos registam, não há intervenções suas que se possam considerar decisivas. Philby, apesar de muito seu amigo, não se coibiu de dizer que Greene e Malcom Muggeridge, outro escritor que ele recrutou para o MI6 e que foi colocado em Lourenço Marques, apenas contribuíram para a boa disposição do serviço.
O que os seus biógrafos acolhem são acontecimentos ocorridos no seu tempo, como que a supor que ele seguramente não seria a eles alheios. Apenas isso.
É o caso de «Garbo», o catalão Juan Pujol Garcia, que a partir da linha do Estoril e desde 1941 mistificava os alemães vendendo-lhes falsa informação, e que acabaria por ser recrutado em 1942 pelos britânicos, cuja rede de agentes duplos (o XX Committee) serviu com larguíssimo sucesso, colaborando decisivamente na indução em erro das tropas de Hitler quanto ao local de desembarque no dia-D.
Greene nunca esteve envolvido directamente no caso de «Garbo», cujo recrutamento foi accionado em Lisboa por Eugene Risso-Gill, e cuja gestão cabia ao pintor e negociante de arte Thomas Harris; mas como confessou mais tarde no seu livro «Ways of Escape», a fascinante personagem deste serviu-lhe de base e fundamento para o seu romance «O Nosso Homem em Havana», a fantástica narrativa de Wormold que enganava os serviços secretos vendendo-lhes esquemas de aspiradores como se fossem rampas de lançamentos de mísseis e sacando proventos em nome de uma vasta rede de fictícios informadores.
Desmond Bristow, que estava na Secção V em Londres à data, e com quem falei na sua residência em Espanha, pouco antes do seu falecimento, omite qualquer menção a Greene neste caso.
Outro caso em que Greene aparece por vezes erroneamente referenciado é o de Otto John, que foi advogado da Lufthansa em Lisboa que, estando implicado, conjuntamente com o conde Stauffenberg, na conspiração para assassinar Adolph Hitler, se refugiou em Lisboa, de onde foi exfiltrado através da actuação de Rita Winsor com a insólita conivência do capitão Catela da PVDE, que, para esse efeito o prendeu no Aljube, protegendo-o dos agentes da Gestapo. Se bem que Rita Winsor, Graham Maingott e Cecil Gledhill fossem agentes locais do MI6 em Lisboa, a verdade Graham Greene nada teve a ver com o assunto porque à data já se havia demitido do MI6. Conforme John refere nas suas memórias («Twice Through The Lines»), quem ele contactou em Londres, muito antes da sua fuga foi Hugh Greene, o irmão mais novo do nosso homenageado, que fora correspondente do «Daily Telegraph» em Berlim, viria a colaborar com ele numa antologia de contos sobre os serviços secretos, que circularia com o apelativo título «The Spy's Bedside Book» e terminaria como director-geral da BBC.
No mais, a lenda sobre Greene e que Greene ajudou a fabricar, faz supor a sua intervenção em situações em que não esteve sequer envolvido.
Greene, por exemplo, nada terá tido a ver com a minuta do relatório sobre a actividade ostensiva de agentes do Eixo em Portugal que o embaixador britânico em Lisboa, à data, Sir Ronald Campbell, submeteu a Oliveira Salazar, o presidente do Conselho de Ministros, para o embaraçar e exigir medidas drásticas de retaliação. Isto demonstra-se porque o relatório, que está na Torre do Tombo, tem a data de 2 de Março de 1943 e, no entanto, nesse momento, Greene ainda não havia chegado à Secção V.
Greene veio a Portugal sucessivas vezes após a sua saída dos serviços secretos.
O Padre Leopoldo Durán, seu amigo e confidente, regista, numa biografia que escreveu sobre a sua pessoa, esses passeios. O escritor ficava hospedado na casa da sua amiga Maria Newall, que conhecia dos tempos da sua estadia no Quénia, e que vivia em Sintra, na Quinta da Piedade, na casa da duquesa do Cadaval. Numa dessas ocasiões Greene imagina a ideia, que não chega a realizar, de entrevistar o major Otelo Saraiva de Carvalho.
Em Sintra Greene vive um episódio risonho, ao tentar localizar a casa romântica onde vivera Lord Byron. Aborda, para o efeito, um casal transeunte e pergunta-lhes pelo local. «Esse senhor Byron ainda vive aqui?», perguntam eles, inocentes de todo quanto àquele expoente da cultura britânica. «Não, acho que já partiu há muito tempo», responde, com divertida ironia, o autor de «The End of the Affair».
Diminuto na sua intervenção nos serviços de informações, Graham Greene é uma figura notória essencialmente pela sua filosofia acerca do «establishement» da comunidade das informações.
Católico de origem, nada puritano de comportamento, radical politicamente, Greene deixou-se seduzir pelos ícones da esquerda. As suas simpatias por Cuba desencadearam a ira dos meios conservadores.
Neste contexto, a ideia que tem sobre os serviços secretos é altamente crítica. Essencialmente um oficial do MI6, agindo no exterior, na área da contra-espionagem, Greene considerava um insulto o imaginar-se que ele pudesse estar envolvido nos serviços de segurança do MI5, porque isso implicaria o ter de espiar os seus próprios concidadãos.
Mas foi em relação a «Kim» Philby, o trânsfuga mais odiado de toda a rede de infiltrados do KGB nos serviços secretos britânicos, que ele materializou o seu ressentimento.
Primeiro, prefaciou o livro de memórias que Philby editou a partir de Moscovo («My Silent War»), aproveitando o ensejo para lançar ali algumas frechas venenosas sobre os serviços que anteriormente servira, nomeadamente ao perguntar-se, relativizando a atitude de Philby, quem não teria traído alguma vez algo mais importante do que um país.
Depois, aceitou em 1968 visitar Philby na URSS, algo que os soviéticos haviam organizado com o propósito de recuperar a imagem pública daquele. Genrikh Borovik, que, por conta do KGB, se incumbira de tal operação, recorda a simpatia desse momento histórico.
Entre 1987 e 1988 três novas visitas teriam lugar à pátria dos sovietes.
Por tudo isto uma aura de suspeita rondaria a sua pessoa.
Que Greene pudesse funcionar como uma «hotline» entre os serviços secretos britânicos e o KGB é, no dizer sugestivo de Anthony Cave Brown, que escreveu a biografia de «C», Stewart Menzies, o patrão máximo do MI6 entre 1939 e 1952, «demasiado não plausível para ser plausível».
Escritor prestigiado, de formação católica, a fama de Greene não resistiu ao excesso de anti-americanismo que caracterizou muitas das suas atitudes e sobretudo o envolvimento com Philby. O FBI vigiou-o por causa disso.
Por isso, quando em 9 de Maio de 1944 resignou à sua função no MI6 pairou a dúvida sobre a verdadeira razão por que o fizera naquele momento. É que um mês depois seria o dia-D, o desembarque do exército aliado nas praias da Normandia.
De aí em diante distanciar-se-ia. Colocado primeiro no PWE, o «Political Warfare Executive», incumbido de funções no campo da propaganda em França, manter-se-ia disponível para agir episodicamente como «correspondente honorário». Hoje, a lenda suplanta o homem.
21.8.05
Thomas Harris, do MI5 e o seu alter «Garbo»

Estudei um pouco a sua vida. Eis o que julgo saber.
Falar de Tomás Harry é seguramente contar a história do agente catalão Juan Pujol Garcia, cuja carreira ele geriu. Só que o personagem é bem mais rico do que isso e resiste a muitas simplificações, não se livrando porém, como se fosse ele próprio também um objecto estético, à duplicidade das interpretações sobre a verdadeira natureza da sua vida. Ainda hoje, anos volvidos sobre a sua morte, as suspeitas sobre a lealdade ensombram a sua lenda, havendo quem, nas ligações pessoais comprometedoras que manteve, veja um elemento de ligação à causa soviética à qual foram fiéis muitos dos seus amigos de então.
Citando Anthony Blunt, o jornalista Chapman Pincher, no seu provocante livro «Their trade is treachery», publicado em 1981, imputa-lhe ideias marxistas mas ressalva que, segundo Blunt, ele não seria um agente russo, pelo menos tanto quanto lhe tinha sido dado observar. Mas já nas memórias que, sob o título «A Game of Moles», editou em 1993, Desmond Bristow citaria a sua própria mulher como partilhando da convicção de que tal ligação era real e demonstrada pelos factos.
Mas é na estética e na arte das sombras e da ambiguidade que se revêm os traços essenciais da sua personalidade multiforme, que Philby consideraria ser a de um espírito intuitivo brilhante.
Nascido em Londres em 1908, filho de pai britânico e de mãe espanhola, a sua vida ficaria duplamente hipotecada à sua ascendência. Do pai Lionel, judeu de origem, herdaria a apetência pela arte espanhola, do mobiliário à cerâmica, dos tapetes à joalharia. Da mãe Enriqueta - também o de uma das suas três irmãs - o gosto pela própria Espanha, na qual viveria alguns anos até à sua morte ocorrida em 1964 em circunstâncias trágicas e enigmáticas.
A galeria de arte ibérica que a família abriria em Conduit Street, ao ser frequentada por altos dignitários e por figuras da realeza, daria a todos a afluência de meios financeiros que os protegeria dos acasos da má fortuna.
Formado numa das mais importantes escolas de arte britânicas e então - a «Slade School of Art» -, completaria a sua formação em Roma, onde ganharia desenvolvimento o seu profundo conhecimento de Goya, de que se tornaria um dos mais reputados especialistas, e de El Greco.
Não desdenhando uma oportunidade comercial, aproveitaria o período da Guerra Civil espanhola para viajar até Espanha e comprar a preços reduzidos peças valiosas que os refugiados transaccionavam por aflição.
Datará dessa ocasião o seu conhecimento com «Kim» Philby, então colocado em Burgos, junto das tropas do Generalíssimo Franco, na qualidade de correspondente do jornal britânico «The Times».
Mas o que é certo é que a partir desse período está intrinsecamente ligado ao «círculo de Cambridge».
Em 1937 uma exposição que a família promove para contribuir para a Cruz Vermelha espanhola é inaugurada nas galerias do Courtlaud Institute pelo curador de quadros da Coroa, nada mais do que Anthony Blunt, «o quarto homem» do grupo que trairá a Grã Bretanha em favor da URSS.
Com o começo da Segunda Grande Guerra, Tomás e sua mulher são recrutados por outro elemento do mesmo grupo, Guy Burguess, respectivamente como cozinheiro e governanta da secção D do MI5, sendo mais tarde transferidos para o SOE, o serviço de operações especiais e clandestinas, por recomendação de mesmo Burguess.
As irmãs, Conchita, Enriqueta e Violeta, integrariam também os serviços do MI5, na secção BI (a).
Com o fim do SOE, o casal mantém-se na secção D, na altura em que Anthony Blunt desempenhava ali funções de assistência da direcção.
E é ele quem, em 1941, recomenda precisamente «Kim» Philby, primeiro para a secção de pessoal do MI6 e mais tarde como possível chefe da sub-secção ibérica da Secção V do MI6, o que vem a suceder sendo que ele próprio viria a chefiar a secção ibérica do MI5.
Como nas suas memórias («My five Cambridge Friends») recordaria Yuri Modin, o «controleiro» soviético de Philby (o agente «Stanley», para o KGB), ao sugerir o nome de Philby, cujos artigos do tempo da Guerra Civil espanhola eram então sobejamente conhecidos, Harris não esqueceria referir que o pai de «Kim» era amigo de Valentine Vivian, então na direcção da secção V, contribuindo, deste modo arguto, decisivamente para uma escolha formidável para a causa soviética.
E é em sua casa, nas festas que regularmente animam a vivência social que partilhava com os eleitos amigos, que se cruzam Philby, Blunt, Burguess e, por vezes, Victor Rotschild, Donald MacLean, «o terceiro homem», Richard Brooman-White, Tim Milne e Peter Wilson, enfim toda a nata do «intelligence service» britânico.
Desmond Bristow, que eu ainda conheci vivo, o homem que viria a chefiar a secção ibérica do MI6 encontraria na sua rica casa de então, no número 6 de Chesterfield Gardens, aquele que, anos mais tarde, surpreenderia o mundo ao fugir para Moscovo revelando assim a verdadeira natureza do seu papel: Philby.
E é, finalmente ele quem instiga Philby a escrever as suas memórias e assegura o contrato junto da editora André Deutch, avançando com três mil libras, a título de direitos autorais.
Colocado no MI5, coube a Tomás Harris ser o gestor do agente Juan Pujol Garcia.
Garcia havia sido localizado pelos britânicos quando, instalado na Costa do Estoril e por apetência pecuniária, habilitava os alemães com mensagens regulares acerca da situação social em Londres, que não conhecia por nunca lá ter ido e correndo o risco de ser descoberto por serem exíguos os seus conhecimentos acerca da vida britânica.
Fiados nos dados que este seu agente «Arabel» lhes passava, os homens da Abwehr em Lisboa retransmitiam o núcleo essencial das informações para Berlim sem darem conta que, em Bletchley Park, nos arredores de Londres, as suas mensagens cifradas estavam a ser descodificadas pelos britânicos.
Estes, localizado «Arabel» viriam a dar-se com o facto de o homem que tanto espanto lhes causava, pela ousadia da sua acção, ter contactado em Lisboa o adido naval americano o tenente Demorest, a quem ofereceu os seus serviços, facto que este de imediato transmitiu ao seu colega Benson, o adido naval da Embaixada britânica.
Transferido para Inglaterra, aonde chegaria em 25 de Abril, via Gibraltar, cognominado agora como «Garbo» - pelo seu estilo cinéfilo - seria entregue aos cuidados do pintor, que, pondo ao serviço do caso a sua prodigiosa imaginação, delineou toda uma rede de agentes fictícios que, supostamente recrutados por«Arabel», estariam a passar aos nazis informações fidedignas, mas que mais não eram, afinal, do que a dieta cuidadosamente tratada pelo «W Board» e pelo«XX Committee»,os organismos aliados incumbidos da decepção estratégica alemã.
Galardoado com uma OBE no final da Guerra, Harris receberia uma menção de apreço do próprio general Dwight Eisenhower, que lhe exprimiu o tributo de gratidão pelo contributo que, ao gerir o agente «Garbo», dera ao sucesso da causa aliada.
De facto a sua ligação a Garcia acabou por criar uma tal relação que as duas criaturas eram praticamente indissociáveis. No dizer de Bristow, Pujol era a pessoa e Harris o cérebro.
Nas suas memórias, escritas em parceria com «Nigel West» (alias o deputado britânico Rupert Alason), «Garbo» recorda a afectuosidade que Harris pusera no primeiro encontro entre os dois, ao abraçá-lo, mão por cima do ombro, com algo mais do que um gesto de protocolo: era um sinal de protecção que os uniria definitivamente.
Minado pelo mundo da duplicidade, a sua vivência com Garcia continua, terminada a Guerra, pela Venezuela, onde este procura, finalmente, paz.
Corre então que entre os dois surgiu um clandestino comércio de arte falsa, que passava, porém, como legítima, por obra e graça de certificados de autenticidade alegadamente subscritos pelo próprio Anthony Blunt. Di-lo no seu livro de memórias, Desmond Bristow, um amigo comum, que cita como fonte a mulher de Pujol Garcia.
Nas suas memórias «Garbo» nem uma palavra deixa que permita tal ilação. Recorda, sim, o último encontro com o artista que havia sido o gestor da sua vida, ocorrido em 1948 na ilha de Maiorca: desejoso de anomimato, pede-lhe então que ajude a criar o mito de que morrera.
O inglês cumpre a sua parte.
Fontes ligadas ao MI5 põe então em circulação que «Garbo» falecera em Angola, vítima de malária.
Num seu livro sobre as operações de decepção Sefton Delmer, refere exactamente a mesma ideia, para a reforçar.
Os últimos anos de Harris são finalmente vividos entre o território apetecível da Espanha, em Campo del Mar, perto de Palma de Maiorca e a casa de Londres, no número 1 de Logan Place.
Só que a turbulenta vivência familiar vai corroendo a sua vida interior.
Discussões frequentes e violentas com Hilda, sua mulher, multiplicam-se, tendo algumas como tema central e não se sabe a que propósito o próprio Philby.
Uma delas, em Janeiro de 1964 teria decorrido, estando ele ao volante do automóvel.
Irado, perderia o controlo, primeiro dos nervos e logo da viatura.
O desastre foi inevitável.
A morte também.
Tinha então cinquenta e cinco anos de idade.
A mulher morreria pouco depois.
A morte de Tomás Harris daria origem, durante bastantes anos a tese especulativas.
Na verdade, na sequência do acidente de viação, a polícia espanhola ao examinar a viatura nada de anormal encontrara na mecânica do mesmo a justificar o acidente. A mulher, que o acompanhava então, havia sido na altura igualmente incapaz de fornecer explicação plausível.
Correndo na altura a «caça às bruxas» em torno de saber quem seria o «quinto homem», na sequência da explosiva revelação da ligação soviética de Philby/Burguess/MacLean/ e Blunt, e sendo Harris um candidato natural a um interrogatório pelo MI5 sobre estes seus passados companheiros, ficou a pairar a dúvida sobre o que se havia passado.
Chapman Pincher no seu livro especula com a eventualidade de na origem da morte ter estado o próprio KGB. Richard Deacon não teve dúvidas em afirmar que Harris era precisamente uma das «toupeiras» soviéticas que haviam sido recrutadas no mundo da arte.
Peter Wright, o autor do célebre «Spycatcher», após entrevistar em Agosto de 1962 Flora Solomon, uma russa sionista emigrada, embora ressalvando que lhe encontrou a típica paranóia russa pela conspiração permanente, cita-a como compartilhando a ideia de que Harris fora eliminado pelo KGB para não fazer revelações demasiado indiscretas.
Foi preciso Desmond Bristow, amigo do casal, vir revelar, citando a viúva de Harris, a discussão tida no automóvel conduzido pelo malogrado pintor para que, finalmente, uma nova explicação viesse ao de cima.
Só que, aqueles que poderiam, eventualmente, dar luz ao que se passou naquele fatídico dia, já cá não estão para nos esclarecer se foi realmente assim que tudo se passou.
E, por causa disso, o desfecho final da história continuará em aberto, aberto a todas as interpretações.